CARLOS HENRIQUE ESCOBAR RESSURGE NO DOCUMENTÁRIO "OS DIAS COM ELE"
Um dos intelectuais mais provocativos do Brasil nos anos 1960 e 70, o filósofo, dramaturgo e professor teve cinebiografia premiada em Tiradentes |
Corre pelo campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) da
Praia Vermelha um folclore de que toda uma ninhada de gatos abandonada lá,
pelos corredores da Escola de Comunicação (ECO), hoje mora em Aveiro, Portugal,
no apartamento do professor (hoje aposentado) Carlos Henrique Escobar. Pode ser
que o bichano felpudo refestelado em seu colo numa sequência do documentário
“Os dias com ele” — eleito melhor filme na 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes,
semana passada, em Minas Gerais — seja um dos felinos da ECO. Mas nada
assegura. Sabe-se apenas que todo mundo que fala sobre Escobar, seja de sua
trajetória polêmica como filósofo de orientação antistalinista, seja de sua
carreira premiada como dramaturgo, ou mesmo de sua experiência como pai (por vezes
ausente), traz seus gatos à tona — talvez por ele mesmo frisar sua devoção pela
espécie.
“Quero ser enterrado num cemitério de animais”, diz o pensador
paulistano, hoje com 79 anos, numa cena de “Os dias com ele”, dirigido por sua
filha Maria Clara Escobar, 24.
Emocionada pelo filme, que marca o ajuste de contas de uma relação entre
pai e filha em forma documental de poema-processo, Tiradentes gargalhou em coro
ao ouvir a frase mórbida do autor de peças como “Caixa de cimento” (1978),
famoso por ter devassado as leituras críticas sobre luta de classes com teses
como “O marxismo trágico” (1992). Tiradentes riu ainda de suas tiradas sobre
autoritarismo e arte, mas se inflamou com as palavras dele sobre o Estado
brasileiro, com o qual se preocupa.
— Acredito que o governo Lula e Dilma esteve e está repleto de
esquerdistas farsantes, que almejam poder e riqueza, como provam as alianças
deploráveis que Lula fez, com Sarney, Collor, Maluf, ou os escândalos no nível
da corrupção que envolveu e envolve os governos e as políticas petistas — diz
Escobar, em entrevista por e-mail ao GLOBO. — Um dia, o Brasil terá caráter
suficiente para ter uma esquerda. Caráter suficiente para ter uma cultura
séria.
Em “Os dias com ele”, assim como em suas aulas de Política da
Comunicação na ECO, sobre catastrofismo, baseadas no livro “A transparência do
mal”, do sociólogo francês Jean Baudrillard, Escobar não se rende à
desesperança. Cultiva planos para preservar sua obra de autor teatral, cujo
principal trabalho é “Matei minha mulher (A paixão do marxismo: Louis
Althusser)” (1983), baseado no assassinato cometido pelo filósofo francês.
— Algumas das minhas peças, sobretudo “Antígona-América”, dirigida pelo
Antônio Abujamra, foram censuradas pelos militares. Na verdade, o conjunto do
meu teatro foi covardemente destruído pelos stalinistas. Hoje, e já é tarde,
começo a publicar meu teatro escrito 30 ou 40 anos atrás. Tive oito peças
montadas e tenho 15 para editar — diz o dramaturgo, que nos anos 1950 casou-se
com a atriz portuguesa Ruth Escobar, com quem viveu (e fez teatro) até o início
dos anos 1960.
A poesia da irreverência
Quem atuou nas peças escritas por Escobar não esconde o encanto diante
da força poética de seus diálogos, que críticos teatrais como Macksen Luiz
definiram nos anos 1980 como “um primado da inteligência, marcados pela
necessidade de se repensar o mundo”.
— A primeira peça profissional que fiz no teatro foi “Antígona-América”,
do Escobar — diz o ator Sérgio Mamberti, atual secretário de Políticas
Culturais do Ministério da Cultura. — Percebi logo o quanto ele era
questionador e irreverente. Além de excelente poeta, Escobar escrevia teatro
com uma preocupação lúcida acerca da América do Sul.
Mamberti conheceu Escobar na chamada Turma da Estátua.
— Nos anos 1950, a Biblioteca Municipal de São Paulo, hoje Biblioteca
Mario de Andrade, tinha uma estátua no hall de entrada em torno da qual se
reuniam intelectuais como Antunes Filho, Décio Pignatari, Escobar — lembra o
escritor e diretor teatral Mário de Almeida, criador do Teatro de Equipe, que
revelou Paulo José e Paulo César Peréio. — Juntos, naquele ambiente,
descobrimos o quanto Escobar fazia do entusiasmo e da paixão a marca de seu
pensamento, sempre denso. E isso se reflete em suas peças e seus poemas.
Filósofo autodidata, autor de livros seminais para o pensamento marxista
brasileiro, como “Ciência da História e ideologia”, Escobar defende que ainda
há uma centelha de transformação possível para o Brasil pela juventude. Deixa
isso claro nos embates verbais que trava com a filha acerca do que deveria ser
a narrativa de “Os dias com ele”, sugerindo planos que não se limitem a uma
câmera à altura do seu peito (conforme o filme é construído), sobretudo no que
se refere a suas memórias sobre a tortura de que foi vítima durante os anos de
chumbo.
— Grande parte do embate se dá justamente porque somos um pouco
incapazes de fazer algo a quatro mãos juntos — diz Maria Clara, fruto de um
romance entre Escobar e a compositora Vera Terra.
Cineasta estreante, ela admite ter tido uma relação distante com o pai,
que vive há uma década em Portugal, casado com Ana Sacchetti, com quem tem um
filho, Emílio, de 15 anos:
— Após o filme, o relacionamento segue um pouco mais próximo, mais
tranquilo em relação a projeções e mágoas. Mais claro, talvez, porém não muito
menos doloroso. O buraco segue. E seria um erro tentar tapá-lo.
Graças à ensaística de Escobar nas imagens filmadas por sua filha, o
longa de Maria Clara foi aplaudido em cena aberta por centenas de espectadores
em Tiradentes e, de quebra, levou o troféu Barroco dado pelo júri oficial (só
de críticos) e pelo júri jovem (de estudantes) e um prêmio de R$ 50 mil,
desembolsados pelo Itamaraty. Além de ter encurtado distâncias emocionais entre
a documentarista e seu documentado, “Os dias com ele”, ainda sem data de
estreia, deixa como legado a redescoberta de um dos intelectuais mais
provocativos do Brasil dos anos 1960 e 70. Responsável por radicalizar o ensino
na UFRJ, combinando aforismos de Nietzsche e filmes de Ingmar Bergman, ele
questionava as contradições da democracia brasileira.
— Com Escobar, no mestrado da ECO, entre 1974 e 76, aprendi a entender o
que é “fazer uma pergunta”..., a natureza de uma interrogação qualquer. Aprendi
a tentar questionar tudo aquilo que nos aparece como natural, dado,
supostamente simples — lembra o crítico João Luiz Vieira, professor de Cinema
da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em universidades, palestras e debates, Escobar, famoso por seu porte de
galã e por seus olhos azuis, chegou a ter um séquito de fãs, apelidado de
escobetes, que idolatravam não apenas sua beleza, mas suas ideias e sua postura
combativa. “Os dias com ele” resgata, por exemplo, uma carta em que ele desanca
o poeta Ferreira Gullar por suas posições políticas em relação ao Partido
Comunista Brasileiro.
— As aulas de Escobar eram performáticas, quase teatrais, típicas de uma
figura controversa, que falava sem parar, mas ajudou a trazer a obra de
pensadores como Gilles Deleuze para o Brasil — diz sua ex-aluna Ivana Bentes,
crítica de cinema e diretora da ECO. — Escobar representava a filosofia maldita,
falando de Rimbaud, de Althusser, de Nietzsche, com um ânimo que explodia a
figura clássica do acadêmico, mas deixava as ideias de um pensador
superprodutivo.
Barata nietzschiana
Ivana lembra que tão forte quanto as discussões filosóficas de Escobar
era o folclore em torno de sua figura. E tal anedotário sempre envolveu sua
obsessão por gatos. Nos anos 1980, um perfil dele publicado no “Jornal do
Brasil” falava que sua antiga casa no Humaitá abrigava 20 felinos, que
consumiam o equivalente a R$ 500 em carne moída por mês. Há ainda lendas na ECO
sobre seu hábito alimentar recorrente: encerrar o expediente semanal num mesmo
boteco, conhecido como Sujinho, tomando, numa talagada, um copo duplo de Toddy
gelado.
— E, no tempo que estudei com ele, tinha a história da barata. Contam
que ele, nietzschiano, ao passar por uma padaria, viu um comerciante tentando
matar uma barata que andava pelo balcão. Dizem que Escobar deu uma bronca
dizendo que toda forma de vida é importante — lembra Ivana. — Esses causos não mudam
a importância dele para a nossa formação.
Até a sessão em Tiradentes, Escobar não havia assistido a “Os dias com
ele”. Agora, com a vitória do filme, Maria Clara espera ainda ajudar o pai a
desencavar sua obra teatral e seu legado filosófico. Neste momento ele prepara
uma coletânea de poemas e um livro, a partir de Althusser, para pensar “uma
nova prática política no Brasil”, já prometendo polêmica, com seu tom
irreverente:
— Sinto que desagradarei aos mais vacilantes, aos que já acreditam numa
posição política correta.
RODRIGO FONSECA Publicado originalmente: 2/02/13,
O GLOBO
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