Inscrições e informações: Instituto de Artes do Pará (IAP), Gerência de Literatura - 40062905 ou 2908.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013



MAURICE BLANCHOT | MARCOS 

CRONOLÓGICOS

Por Christophe Bident
Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho


1907. Maurice Blanchot nasce em Quain, lugarejo de Devrouze (Saône-et-Loire), em 22 de setembro, na casa herdada da família da mãe, uma família católica de proprietários de terras abastados. Ele tem dois irmãos e uma irmã. Mudanças frequentes de domicílio: o pai é professor, preceptor particular, e aluga seus serviços de Paris a Elbeuf, de la Sarthe a Chalon.
1923. Faz o Baccalauréat. Uma intervenção cirúrgica no duodeno, que ele julgará inútil, adia em um ano a partida de Blanchot para a universidade. Ele gozará durante toda sua vida de uma « irresistível pequena saúde », como formula Deleuze a propósito de inúmeros artistas ou escritores.
Por volta de 1925. Estudante de filosofia e de alemão, ele conhece Emmanuel Lévinas na Universidade de Estrasburgo. Leituras comuns: a fenomenologia alemã, Proust e Valéry. « A amizade entre Maurice Blanchot e Emmanuel Lévinas foi uma graça; ela permanece como uma benção desse tempo » (Jacques Derrida).
Blanchot defende na Sorbonne uma monografia sobre os céticos.
1930. Ele começa estudos de medicina em Sainte-Anne. Mas é o jornalismo que o atrai, bem mais que a Universidade. Publica um primeiro artigo sobre Mauriac. Colabora em jornais e revistas de extrema-direita, principalmente em torno dos jovens dissidentes da Ação Francesa guiados por Thierry Maulnier. Começa um romance do qual ele destruirá provavelmente vários estágios.
1933. Anticapitalismo, anti­parlamentarismo, anticomunismo são as palavras de ordem permanentes, a serviço de uma revolução do espírito. Antigermanismo e antihitlerismo: Blanchot pertence também a um meio de judeus nacionalistas prontos para denunciar as exacções nazistas. Em Le Rempart, cotidiano dirigido por seu amigo Paul Lévy, ele se insurge contra as primeiras levas de judeus a campos de trabalho.
1936. Morte do pai. Ano de radicalização. Participação no mensal Combat, dirigido por Jean de Fabrègues e Thierry Maulnier.
1937. Virulenta crônica política em L'Insurgé, acompanhada de sua primeira crônica literária. Mas ele põe fim a essa dupla colaboração ao longo do ano. Não assinará mais nenhum texto político à extrema-direita. Morte de Claude Séverac, próxima colaboradora em Aux Écoutes, jornal dirigido por Paul Lévy. É também provavelmente o ano em que ele conhece Jean Paulhan.
1940. Ele segue o governo na « Queda », em Bordeaux, depois em Vichy, para o Journal des débats.  Renuncia, então, a suas funções de editorialista. Na Jeune France, associação cultural financiada pelo Estado, ele dirige a secretaria de estudos « Littérature »: com alguns, ele pretende « se servir de Vichy contra Vichy ». Em dezembro, ele conhece Georges Bataille, que descreverá mais tarde em uma nota autobiográfica a natureza dos laços imediatos que foram os deles: « a admiração e o acordo ».
1941. Começa uma série de 171 crônicas literárias no Journal des débats. No outono, primeiro livro: ' Thomas l'obscur, romance. Ele hospede e põe ao abrigo a esposa e a filha de Emmanuel Lévinas.

1943. A pedido de Dionys Mascolo, Faux Pas retoma 54 crônicas literárias do Journal des débats.
1944. Posto contra o muro de sua casa natal, Blanchot é salvo no momento preciso por uma diversão de camaradas resistentes. O milagre pelo qual ele escapa ao pelotão de fuzilamento lhe deixa o sentimento da sobrevivência (« o instante de minha morte de agora em diante sempre em instância », escreverá cinquenta anos depois, em L'Instant de ma mort).
1946. Publica em L'Arche, Critique, Les Temps modernes, participa de diversos júris literários e começa a se impor como o crítico mais importante do pós-guerra. Início de seu relacionamento com Denise Rollin.
Deixa Paris para se instalar sozinho no Mediterrâneo, em Èze-village, mesmo que não deixe de passar frequentes temporadas na capital.

1946/1958. Os artigos mudam de forma: mais longos, mais densos, testemunham uma autoridade nova e uma pesquisa concertada. Em 1953, ele enceta uma colaboração mensal na Nouvelle Nouvelle Revue Française. Blanchot cria seu espaço literário: Interminável, o incessante, o neutro, o fora, a solidão essencial. O espaço literário, o livro, aparece em 1955. Esses anos são também aqueles dos relatos, escritos em Èze, no « pequeno quarto » evocado no começo de um texto dedicado mais tarde a des Forêts, Anacrusa. Redige uma segunda versão de Thomas l'obscur, muito mais abreviada. Publica L'Arrêt de mort, Au moment voulu, Celui qui ne m'accompagnait pas, Le Dernier Homme. Morte da mãe em 1957.
1958. Blanchot retorna a Paris. A Dionys Mascolo que, contra o « golpe de Estado » do general de Gaulle, acaba de fundar uma revista em 14 julho, Blanchot escreve: « Eu gostaria de te expressar meu acordo. Não aceito nem o passado nem o presente ». Publica « Le refus » [A recusa] no segundo número da revista. Torna-se próximo de Robert e Monique Antelme, Marguerite Duras, Louis-René des Forêts, Maurice Nadeau, Elio e Ginetta Vittorini.
1960. Manifesto dos 121: com Mascolo e Schuster, ele é o seu principal redator. Projeto da Revista internacional: com Mascolo e Vittorini, ele é seu principal iniciador. Antelme, Butor, des Forêts, Duras, Leiris, Nadeau, Calvino, Pasolini, Bachmann, Enzensberger, Grass, Johnson, Walser... participam das reuniõe. Outros, como Char e Genêt, propõem textos. O projeto fracassa ao cabo de quatro anos de esforços e deixa Blanchot desesperado.
1962. Publicação de L'Attente l'oubli, primeiro livro fragmentário. Morte de Georges Bataille. Blanchot escreve um texto em homenagem ao amigo desaparecido: « L'amitié ».
1964. Blanchot escreve uma primeira carta a Jacques Derrida: início de uma correspondência seguida.
1966. A primeira homenagem notória é prestada pela revista Critique, que dedica a Blanchot um número especial. Textos de Char, Collin, de Man, Foucault, Laporte, Lévinas, Pfeiffer, Poulet, Starobinski. « La pensée du dehors » [O pensamento do fora], o artigo de Foucault, é retumbante. Morte de Elio Vittorini.
1968. Blanchot manifesta, inventa panfletos, preside sessões do Comitê de estudantes e escritores. Escreve sob anonimato mais da metade do primeiro e único número da revista Comité.
1970. Inúmeros e graves problemas de saúde.
1972. Escreve um texto em homenagem a Paul Celan, que será retomado em livro: Le Dernier à parler.
1973. Le Pas au-delà, segundo livro de fragmentos.
1978. Em janeiro, um depois do outro, desaparecem seu irmão René e Denise Rollin.
1980. L'Écriture du désastre, terceiro livro de fragmentos.
1983. La Communauté inavouable [A comunidade inconfessável] responde à « La Communauté désœuvrée » [Comunidade desobrada], artigo de Jean-Luc Nancy que se tornará também um livro. A escrita se rarifica. Opúsculos, reedições, prefácios, homenagens, respostas a questionários ou a enquetes, cartas públicas, intervenções políticas.

1990. Morte de Robert Antelme.
1995. Morte de Emmanuel Lévinas; depois, em 1996, de Marguerite Duras; em 1997 de Dionys Mascolo e d'Anna Wolf, viúva de seu irmão René, com quem ele vivia desde a morte deste.
2003. Maurice Blanchot morre em 20 fevereiro. Quatro dias depois, na ocasião das exéquias, Jacques Derrida pronuncia um texto em homenagem à « testemunha de sempre ».


  Fonte: Magazine Littéraire | Nº 424 - Outubro de 2003

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO EM BELÉM

Organizar o Colóquio Blanchot sem ter dinheiro algum e resistir à Providência diabólica do patrocinador. O ambiente acadêmico hostil ao que não se pode mercar - vender, comprar -, premedita contra você. As paredes doentias de tais instituições sequer escondem suas bilheterias nem seus guichês. Blanchot, de fato, não poderia ficar confinado aí nestes três dias de março. Presídios grosseiros da estupidez. O Colóquio será realizado em Belém longe ao máximo dos tais Seminaristas da má-fé. Em plena semana santa no entanto terão que se servir do grotesco banquete que organizamos - o pensamento de Blanchot, sua Vida jamais destinada aos altares, senão ao Fogo.


sábado, 26 de janeiro de 2013


três poemas para Blanchot

I.
anos bebendo
a tua imagem
a curvatura
de um rosto
por trás
do lápis
é noite e eu
te chamo
(sussurra
a tua
ausência; um
nome
diante do
inverno)
levanta-te
na minha leitura
e vem abjurar
a morte
II.
o último
homem
morria
no final
do corre-
-dor
quem há de falar
debaixo teu
nome?
- renasce,
e o malogro
da linguagem
riscos negros
sob o papel
branco
palavra. ou
nem isso.
III.
a amizade
é um fio de
navalha
sobre o tempo
alcança
a minha
boca
e venta
esta distância
a minha mudez
escrever, antes
tocar. não sou eu
a mão que escreve.
é outra.



Conversa com Christophe Bident, biógrafo de 

Maurice Blanchot

Por Sérgio Medeiros

O teórico e critico literário Maurice Blanchot (1907-2003) influenciou toda uma geração de pensadores franceses da segunda metade do século XX. Michel Foucault e Jacques Derrida se debruçaram sobre seus textos, mas outros também o fizeram, como, por exemplo, Roland Barthes. Dentre seus ensaios seminais, citaria “A literatura e o direito à morte", que fecha o volume A parte do fogo (Rocco, 1997), obra referencial para os estudiosos da literatura. Blanchot é também cultuado na França como um importante escritor do pós-guerra, autor de romances e novelas paradoxais.
No Brasil, em 2006, foi publicada a sua importante antologia O livro por vir (Martins Fontes), numa tradução de Leyla Perrone-Moises, obra que contém ensaios sobre diversos autores, como Mallarmé e Artaud, Borges e Beckett. A produção literária de Blanchot, no entanto, continua ignorada entre nós, onde só foi publicado, em 1991, o romance Pena de morte (Imago), que embaralha os gêneros narrativos, pois e, simultaneamente, história de amor e de terror, memória e reportagem, reflexão filosófica e estudo de um delírio. Talvez um paradigma do texto pós-moderno, que passa por todos os gêneros, sem se fixar em nenhum.
Professor da Universidade de Paris 7, Christophe Bident (1962-  ) é autor de um alentado ensaio biográfico sobre o escritor francês, intitulado Maurice Blanchot, partenaire invisible (Maurice Blanchot, parceiro invisível), publicado em 1998 (Editions Champ Vallon), ainda inédito em português. Na entrevista a seguir, Bident discute a escrita e o fragmento, o discurso e o diálogo, expondo diferentes facetas da escrita e do pensamento de Blanchot.

1. Onde começa a obra de Blanchot? No romance, ou literatura, ou na reflexão filosófica?

Onde começa uma obra? Isto é, em que lugar, em que espaço ela nasce quando começa a ser reconhecida? Ela possui mesmo uma origem, uma única origem? O que a inicia? No francês antigo, débuter (começar, estrear) significava, num jogo, deixar uma bola bater em outra já lançada por um adversário. Contra qual obra a de Blanchot se choca, iniciando-se? Começa como obra? Começa, como você sugeriu, num gênero, o romance, ou numa disciplina, a literatura, a filosofia?
Blanchot parece responder duas vezes a essa pergunta. Uma primeira vez em 1980, em L'Ecriture du désastre (A escrita do desastre), quando evoca a cena primitiva na qual a criança, de seis ou sete anos, experimenta pela primeira vez a sensação do vazio, do nada, da insignificância, ao olhar o céu pela janela. Uma segunda vez em 1983, em Après coup (Logo depois), quando evoca dois relatos, "L'idylle" (Idílio) e "Le dernier mot" (A última palavra), os quais, redigidos secretamente em 1935 e 1936, lhe permitiram decantar uma escrita que se escorava há muitos anos numa forma romanesca: pôde então concluir seu primeiro romance, publicado em 1941 e intitulado Thomas l'obscur (Tomás, o obscuro). Esses relatos breves teriam, assim, iniciado um romance que inaugurou oficialmente a bibliografia de Blanchot. Um romance que se inicia, que vai de encontro a si mesmo, pois nove anos mais tarde, Blanchot publicará uma segunda versão, que substituiria definitivamente, a seu olhar, a primeira.
Assim, os textos iniciam outros, sem fim, e são justamente tais desenvolvimentos de substituição, de desvio, de apagamento que Blanchot não cessaria de evocar, ao associar a palavra literária ao interrompido, ao imemorial, ao anterior ou ao incessante.
Que a origem esteja sempre já na letra é o que a obra não pára de repetir, e sabemos o proveito que disso tirará um leitor como Jacques Derrida. A letra não é ai, portanto, menos vital. Maurice Blanchot pediu certa vez a editora Gallimard que escrevesse, dali por diante, no início de cada um de seus livros que seriam reeditados na coleção "L'imaginaire", a seguinte frase: "Sua vida e inteiramente dedicada à literatura e ao silêncio que lhe é próprio". É uma fórmula que admiradores e desafetos quiseram ler valorizando o processo de apagamento por meio do qual o autor desaparecia em seus livros. Uns e outros leram a frase começando pelo fim. Era o espírito da época. Mas o que dizer da vida, da "sua vida"? Não é ela que atravessa a literatura, onde silencia? São com efeito tais traços que encontramos, diversamente urdidos, nos romances e nos relatos de Blanchot.
Com meu amigo Pierre Vilar organizei em Paris há quatro anos um colóquio sobre Blanchot, que decidimos intitular "Maurice Blanchot, relatos críticos". Pareceu-nos que tudo em Blanchot era récit (relato). Suas críticas são dramáticas, retóricas, e a sua façanha é ter construído uma obra de crítica, provavelmente a maior do século XX, fazendo leituras com o mesmo impulso inicial. E um crítico que passou a vida comentando, para jornais e revistas, livros que acabavam de aparecer. Ele dedica uma atenção muito precisa ao movimento dos textos que comenta, situando-os ao mesmo tempo no projeto que é seu: cercar a parte secreta, neutra, impessoal da criação. Assim ele construiu uma obra com o tempo, com o seu tempo. A parte crítica se refletirá nos romances, relatos, fragmentos.

2. Por que Blanchot preferiu o jornalismo ao ensino universitário?

A resposta a essa pergunta se encontra em parte já na precedente. Ela aparece mais profundamente em "La solitude essentielle" (A solidão essencial), esse texto magnifico que abre a crônica de Maurice Blanchot na Nouvelle nouvelle revue française, em 1953, e que por sua vez abrirá, em 1955, 0 espaço literário (Rocco, 1987). O jornalismo, aquele dos anos 1950 e 1%0, permitiu-lhe exercer um intercâmbio dialético com o mundo, o que ele chamara, em uma carta a George Bataille, de "nomear o possível". A escrita em si lhe permitia se retirar do mundo e "responder ao impossível". De um lado, um dever, do outro, uma exigência. De um lado a presença, do outro, a ausência. E, para ele, a presença não podia ser da ordem da mestria, da mestria conceitual, professoral. Beckett tentou um pouco, antes de compreender que o ensino não era feito para ele. Blanchot nem sequer tentou. É necessário também lembrar que ele provavelmente frequentou pouco a escola: seu pai era preceptor privado, e o menino, extremamente dotado, fez o exame final do liceu com 15 ou 16 anos.

3. Blanchot escolheu a forma do diálogo e do fragmento, formas importantes da expressão do seu pensamento. Por que?

Novamente, esse tema acabou de ser abordado. É que suas questões estão extremamente interligadas e você as coloca em termos de escolha. É uma maneira determinista, ou sartreana, de ver as coisas. Talvez se possa dizer também que você escolhe a escrita, uma forma de escrita. Entre uma decisão tomada e uma escolha consentida, muitos motivos entram em jogo. A conversa e o fragmento não aparecem senão muito tarde na escrita de Blanchot, cuja sintaxe permanece sobretudo interligada. Penso que sua ligação com Emmanuel Lévinas determinou de um modo muito nítido a forma do diálogo, da conversa. É em A conversa infinita (Escuta, 2001) que ele começa a utilizá-la regularmente: em lugar de apresentar suas ideias sob forma discursiva e linear, ele escolhe dois interlocutores que dialogam, sendo que um deles representa mais seus próprios pensamentos. Esses textos, dos quais alguns pressupõem Lévinas, ilustram o caráter dissimétrico do diálogo, e ilustram a dissimetria das discussões que Blanchot podia ter com Lévinas (uma não-simetria, mas não uma convergência ou divergência) sobre questões filosóficas, como aquelas do diálogo, da troca e da partilha. Pode-se afirmar, acredito, que a forma da conversa desemboca naquela do fragmento. E isso é cronológica e logicamente verificável. Nas conversas que ele escreve, nas conversas que Iê, e a parte central e morta do diálogo que lhe interessa cada vez mais: o entre que surge entre os interlocutores. Essa parte secreta e inominável e aquela que os fragmentos designam.
Os fragmentos são como os restos de uma conversa impossível, a começar pela conversa de uma civilização que chega ao desastre da Shoah, o acontecimento "absoluto", como diz Blanchot, que exerce papel fundamental num texto como L'Ecriture du désastre (A escrita do desastre), escrito em fragmentos. Acrescentemos que Blanchot redige sua escrita fragmentária nas pegadas daquela de Heráclito, Nietzsche ou Bataille, sem falar do romantismo alemão, escritores ou movimento aos quais, na mesma oportunidade, ele presta homenagem.
Mas eu penso que não se pode isolar essas duas formas do resto da obra de Blanchot. Nele, a escrita sempre apresentou o paradoxo de ser um misto de continuidade e descontinuidade. Numa tese que acabou de ser defendida na Universidade de Paris 7, Les plans du récit (Os pIanos do relato), Jonathan Degenève mostrou como os textos de Blanchot, Beckett e des Forêts, e também aquele do cinema de Welles, se recusavam, os primeiros, a "insensibilizar" as transições, e o último, a "narrativar" os cortes. As escrituras assumem a descontinuidade inerente à acidentalidade do gênero narrativo. Elas expõem o modo de construção de todo relato: a disjunção de pIanos. E como a obra de Blanchot me parece inteiramente narrativa, isso equivale a dizer também, num certo sentido, que eIa é inteiramente fragmentária, sob modos diversos que uma leitura poética, que ainda não foi feita, deveria poder indicar.

4. Maurice Blanchot escreveu um relato sobre um jovem "morto-imortal”, L'instant de ma mort (O instante da minha morte). Blanchot fala dele mesmo?

Dele mesmo? Ele, o homem, o autor que, segundo os contratos de leitura estabelecidos pelos estudiosos da poética, poderíamos identificar com o narrador-personagem do relato? E ele mesmo, o ipse (o mesmo), a categoria da reflexão, do olhar, da identidade, do entre-dois, segundo uma reflexão filosófica, conferiria ao relato um valor, se não testamentário, ao menos testemunhal? Blanchot fez de tudo para embaralhar as pistas. O acontecimento enquanto tal, o acaso que lhe permitiu escapar da morte no final da segunda guerra mundial, é confirmado por uma carta endereçada a Pierre Prévost dois meses depois dos fatos, em setembro de 1944. Também é evocado muito brevemente num relato publicado em 1949, o qual mais tarde se intitularia La folie du jour (A loucura do dia). O fato é ainda atestado por amigos de Blanchot, a quem ele fez confidências. A esses diferentes modos de relação, epistolar, ficcional, oral, podemos acrescentar nossa fé. O que mais, além disso? Talvez, levar em conta o humor da narração, começando pelo jogo com a data escrita na casa da família: 1807, escreve Blanchot, precisando que se trata do ano em que Napoleão entrou em Iena, sob os olhos de Hegel postado numa janeIa. Ora, a data escrita na casa da família de Blanchot, em Qauin, na Borgonha, e 1809, e a data da invasão francesa e 1806. Inserindo uma data intermediária, Blanchot modifica duas vezes a realidade, a realidade familiar (a fundação da casa onde nasceu), a realidade histórica (a ocupação francesa que motivara depois as ocupações alemãs). Por meio dessa ficcionalização do acontecimento, ele escreve seu próprio nascimento, 1907, na genealogia de uma família de proprietários de terra. Assim, 1907 se torna a data de celebração do centenário da casa da família. Como sucede muito em Blanchot, uma vacilação de datas que, desta vez, lhe permite mostrar-se ao leitor a um só tempo como ele, na realidade, e ele mesmo, na ficção.

5. Blanchot amava a literatura e a música. Ele escreveu sobre esse último tema? Existem músicos entre os personagens de Blanchot?

Sim, como muitos escritores, Blanchot amava tanto a música quanto a literatura, se não mais. Durante toda a sua vida, foi excelente pianista; seu compositor preferido era Schumann. Jamais quis escrever música. Mas sabemos até que ponto era sensível à poesia, e conhecemos o número considerável de artigos que escreveu sobre poetas. Sua prosa, alias, é muito poética. Se não há músicos nos seus relatos, há uma cantora, Cláudia, em Au moment voulu (Na hora certa). E é uma mulher amada pelo narrador, a quem este propõe que venha viver com ele no suI. Esse pedido é provavelmente autobiográfico: penso na mulher que Blanchot amou, Denise Rollin, que foi a mulher de seu amigo George Bataille. Mas o relato faz também de Cláudia um "personagem conceitual", segundo a fórmula de Deleuze; um personagem poético, musical, canoro. Denise, Cláudia, a vida, a ficção: ela, ela mesma.
MAURICE BLANCHOT: Sua vida é inteiramente dedicada à literatura e ao silêncio que lhe é próprio

dele se dizia não existir mais de um nem em fotografia 
ausente das coisas mínimas que todos se põem a ter

Filho do filósofo Charles Blondel, Maurice Blanchot, Madeleine Guéry, Suzanne Poirier e Emmanuel Lévinas

dele se sabia não ser sempre o mesmo não parecer-se a ninguém metamorfose de prosa em poesia: palavra desertada de sol & raiz: 
constelação de vozes indiscerníveis  a mudez infinita

De pé: M. Rontchewky. Sentadas: Suzanne Poirier e Madeleine Guéry.
Acima: Emmanuel Lévinas e Maurice Blanchot

dele se via ziguezaguear nas ondas do mar-livro [mar-livre] por onde vagueava anos a fio tentando não pensar nada além da escrita  a impassibilidade retirada da gaveta da teoria
ir direto aos abismos às inversões no espelho  
o eco ensurdecedor da morte

ney ferraz paiva

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

ADAM BROMMBERG

Os laços do pensamento

   
 por Nilson Oliveira



O pensamento não tem lugar, ele deriva de todas as paragens, nasce das dobras de qualquer circunstância, da invenção de um conceito ou do exercício do próprio pensamento. Pensar significa dar funcionamento às coisas, deslocá-las ou atravessá-las com significados outros, pensamentos outros. Segundo Daniel Lins, o pensamento-outro engloba o plano de imanência, ou seja, a possibilidade de pensar o impossível, de pensar o impensável: “o plano de imanência é ao mesmo tempo o que dever ser pensado e o que não pode ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento”.  Com efeito, percebemos que no pensamento-outro se prolifera mais do que a agregação das diferenças, a duplicidade dos entendimentos, ou melhor, um pensamento ainda porvir, exterior ao próprio pensamento.  Michel Foucault, em o Pensamento do Fora, nos traz importantes pistas nessa direção: é preciso passar para “fora de si”, se envolver e se recolher na fascinante interioridade de um pensamento que é legitimamente Ser e Palavra.  Mergulhar na superfície de um pensamento legitimamente Ser e Palavra significa liberar-se das reminiscências, quer dizer, do monolítico e da tensão que ela representa, pois esse pensamento, Ser e Palavra, se mantém fora de qualquer subjetividade para dele fazer surgir os limites como vindo do exterior, enunciar seu fim, fazer cintilar sua dispersão e acolher apenas sua invisível ausência, e que ao mesmo tempo se mantém no limiar de qualquer positividade, não tanto para apreender seu fundamento ou justificativa, mas para encontrar o espaço em que ele se desdobra. Nessa esfera, pensar é um ato de vitalidade, é essencialmente afirmativo, é uma forma de ver a vida e o que passa através dela, é um verdadeiro caso de possível, de interpretação, pois interpretar equivale a criar, à maneira do jazz, interpretar  interpretações, e com isso, como nos diz Deleuze: modificar as coisas, “mudar a vida”.. Portanto, pensar é, sobremaneira, um ato de interpretação, logo, de criação.  Pensar é dar velocidade ao pensamento pensando as coisas que nos afetam, seja em matéria de literatura ou do que for. Assim, encontramos Maurice Blanchot, como uma Máquina de Possível, escrevendo, interpretando, pensando, gerando pensamentos outros.


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013


Maurice Blanchot e Emmanuel Levinas: Amizade

COLÓQUIO BLANCHOT: LITERATURA, AMIZADE: UMA VIDA
Dez anos da Morte de Maurice Blanchot


Maurice Blanchot atravessou o último século e deixou um valioso lastro de contribuição, tanto na literatura, quanto no pensamento, constituindo uma referência inteiramente singular nas formas de pensar a experiência literária.   Blanchot se revela um autor-leitor, ao mesmo tempo em que convoca, além de si mesmo, na amizade, sua comunidade literária, notadamente com Mallarmé, Hölderlin, Kafka, René Char, Bataille, para escrever com ele. Dessa maneira, efetua uma relação entre a amizade – a tentativa de abordar o outrem – e o escrever, e desse convívio criam-se momentos em que algo é lido/escrito ou que alguém escreve/lê – uma conversa vencida pelo extenuamento, que, por sua vez, transforma a conversa, e retira-lhe o comum, a troca, ao possibilitar no ato da escrita outra partilha.

Blanchot, a partir de um projeto de escrita que se dobra simultaneamente entre a crítica e a ficção [numa investida que explora, para além das possibilidades, a destruição dos gêneros], deflagra uma miríade de experimentações, por entre obras e autores – em abordagens marcadas por uma singularidade – com os quais produz noções como: Fora, Desdobramento, Neutro, Amizade. Com isso, provoca uma verdadeira fissura no pensamento literário, e influencia toda uma geração de escritores, de artistas, e de pensadores da segunda metade do século XX.

Dentre tantos encontros, destacam-se os de Blanchot com Bataille [comunidade dos sem comunidade]; com Emanuel Levinas, Marguerite Duras, Robert Antelme [marcados pelo silêncio intolerável dos campos de concentração]; e com Dionys Mascolo, Maurice Nadeau [geração da desobediência civil – Manifesto 121 – em favor da libertação da Argélia (60) e dos combates do maio (68) francês]. E em cada um desses encontros foi, paradoxalmente, ativo, generoso, distante. Manteve com esta Comunidade uma efetiva ética da Amizade.

Esse sentimento, essa afetividade tecida e atada por laços de Pensamentos, sem divisão e sem reciprocidade. Amizade cujo comum foi, mais que uma generosidade trivial, a inseparável distância. No colocar-se, efetivamente, ao outro, àquele que, como no poema de Rilke, reside na condição de quem sempre parte. Os errantes, esses ainda mais passageiros do que nós mesmos. Pressionando desde cedo.

Além disso, destaca-se que Blanchot – através de análises que romperam com os limites entre Literatura e Filosofia – exerceu uma Influência Ativa em pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Roger Laporte, Jean-Luc Nancy.  Como bem ilustra Deleuze [1998, p. 34] [na conexão Blanchot/Foucault]: “Foucault sempre reconheceu uma dívida em relação a Blanchot. Ela talvez se divida em três pontos: FALAR NÃO É VER, diferença que faz com que se dizendo o que não se pode ver, leve-se a linguagem a seu extremo limite. A seguir, a superioridade da terceira pessoa, o ELE ou o NEUTRO, o SE, em relação às duas primeiras. Por fim, o tema do FORA: a relação, que é também NÃO RELAÇÃO, com um FORA mais longínquo que todo o mundo exterior, e por isso mesmo próximo de todo mundo interior”. 

Com isso, percebe-se que a Literatura em Blanchot é invenção de Uma Vida, maneira de dar passagem a múltiplas possibilidades dessa vida, numa relação inteiramente desapossada do Uno, na qual o Experimento do ato Criativo extravasa uma potência Vivível ou Vital. Experiência de acesso ao que existe de mais singular no pensamento da Arte/Literatura, fio condutor de intensivos deslocamentos, território por excelência da Imanência de Uma Vida.

Para Blanchot, o pensamento daquele que é próximo abre-se, na amizade, para seu amigo, mas permanece inacessível não somente porque a vida é movente, mas porque a vida acolhe a estranheza do fim em sua iminência infinita. Assim, o Colóquio Literatura/Amizade: Uma Vida – 10 anos da morte de Maurice Blanchot – propõe-se, em forma de homenagem ao escritor francês, abordar Nele o conceito de Amizade. E no rastro deste conceito investigar os efeitos múltiplos da relação entre Blanchot e a Literatura, numa investida engendrada por pesquisadores e especialistas, cujo leitmotiv consiste em celebrar os 10 anos da Morte do escritor, mas em movimento contínuo para além-fim, o constante devir.

Nilson Oliveira, Curador do Colóquio