Conversa com
Christophe Bident, biógrafo de
Maurice Blanchot
Por Sérgio Medeiros
O teórico e critico literário Maurice Blanchot (1907-2003)
influenciou toda uma geração de pensadores franceses da segunda metade do
século XX. Michel Foucault e Jacques Derrida se debruçaram sobre seus textos,
mas outros também o fizeram, como, por exemplo, Roland Barthes. Dentre seus
ensaios seminais, citaria “A literatura e o direito à morte", que fecha o
volume A parte do fogo (Rocco, 1997),
obra referencial para os estudiosos da literatura. Blanchot é também cultuado
na França como um importante escritor do pós-guerra, autor de romances e
novelas paradoxais.
No Brasil, em 2006, foi publicada a sua importante antologia O livro por vir (Martins Fontes), numa
tradução de Leyla Perrone-Moises, obra que contém ensaios sobre diversos
autores, como Mallarmé e Artaud, Borges e Beckett. A produção literária de
Blanchot, no entanto, continua ignorada entre nós, onde só foi publicado, em
1991, o romance Pena de morte
(Imago), que embaralha os gêneros narrativos, pois e, simultaneamente, história
de amor e de terror, memória e reportagem, reflexão filosófica e estudo de um
delírio. Talvez um paradigma do texto pós-moderno, que passa por todos os gêneros,
sem se fixar em nenhum.
Professor da Universidade de Paris 7, Christophe Bident (1962-
) é autor de um alentado ensaio biográfico
sobre o escritor francês, intitulado Maurice
Blanchot, partenaire invisible (Maurice Blanchot, parceiro invisível), publicado
em 1998 (Editions Champ Vallon), ainda inédito em português. Na entrevista a
seguir, Bident discute a escrita e o fragmento, o discurso e o diálogo, expondo
diferentes facetas da escrita e do pensamento de Blanchot.
1. Onde começa a obra de Blanchot? No romance, ou literatura,
ou na reflexão filosófica?
Onde começa uma obra? Isto é, em que lugar, em que espaço ela
nasce quando começa a ser reconhecida? Ela possui mesmo uma origem, uma única
origem? O que a inicia? No francês antigo, débuter
(começar, estrear) significava, num jogo, deixar uma bola bater em outra já
lançada por um adversário. Contra qual obra a de Blanchot se choca,
iniciando-se? Começa como obra? Começa, como você sugeriu, num gênero, o romance,
ou numa disciplina, a literatura, a filosofia?
Blanchot parece responder duas vezes a essa pergunta. Uma
primeira vez em 1980, em L'Ecriture du désastre
(A escrita do desastre), quando evoca a cena primitiva na qual a criança, de
seis ou sete anos, experimenta pela primeira vez a sensação do vazio, do nada,
da insignificância, ao olhar o céu pela janela. Uma segunda vez em 1983, em Après coup (Logo depois), quando evoca
dois relatos, "L'idylle" (Idílio) e "Le dernier mot" (A última
palavra), os quais, redigidos secretamente em 1935 e 1936, lhe permitiram
decantar uma escrita que se escorava há muitos anos numa forma romanesca: pôde
então concluir seu primeiro romance, publicado em 1941 e intitulado Thomas l'obscur (Tomás, o obscuro).
Esses relatos breves teriam, assim, iniciado um romance que inaugurou
oficialmente a bibliografia de Blanchot. Um romance que se inicia, que vai de
encontro a si mesmo, pois nove anos mais tarde, Blanchot publicará uma segunda
versão, que substituiria definitivamente, a seu olhar, a primeira.
Assim, os textos iniciam outros, sem fim, e são justamente
tais desenvolvimentos de substituição, de desvio, de apagamento que Blanchot
não cessaria de evocar, ao associar a palavra literária ao interrompido, ao
imemorial, ao anterior ou ao incessante.
Que a origem esteja sempre já na letra é o que a obra não pára
de repetir, e sabemos o proveito que disso tirará um leitor como Jacques
Derrida. A letra não é ai, portanto, menos vital. Maurice Blanchot pediu certa
vez a editora Gallimard que escrevesse, dali por diante, no início de cada um
de seus livros que seriam reeditados na coleção "L'imaginaire", a
seguinte frase: "Sua vida e inteiramente dedicada à literatura e ao silêncio
que lhe é próprio". É uma fórmula que admiradores e desafetos quiseram ler
valorizando o processo de apagamento por meio do qual o autor desaparecia em seus
livros. Uns e outros leram a frase começando pelo fim. Era o espírito da época.
Mas o que dizer da vida, da "sua vida"? Não é ela que atravessa a
literatura, onde silencia? São com efeito tais traços que encontramos,
diversamente urdidos, nos romances e nos relatos de Blanchot.
Com meu amigo Pierre Vilar organizei em Paris há quatro anos
um colóquio sobre Blanchot, que decidimos intitular "Maurice Blanchot,
relatos críticos". Pareceu-nos que tudo em Blanchot era récit (relato). Suas críticas são dramáticas,
retóricas, e a sua façanha é ter construído uma obra de crítica, provavelmente
a maior do século XX, fazendo leituras com o mesmo impulso inicial. E um crítico
que passou a vida comentando, para jornais e revistas, livros que acabavam de
aparecer. Ele dedica uma atenção muito precisa ao movimento dos textos que
comenta, situando-os ao mesmo tempo no projeto que é seu: cercar a parte secreta,
neutra, impessoal da criação. Assim ele construiu uma obra com o tempo, com o
seu tempo. A parte crítica se refletirá nos romances, relatos, fragmentos.
2. Por que Blanchot preferiu o jornalismo ao ensino
universitário?
A resposta a essa pergunta se encontra em parte já na precedente.
Ela aparece mais profundamente em "La solitude essentielle" (A solidão
essencial), esse texto magnifico que abre a crônica de Maurice Blanchot na Nouvelle nouvelle revue française, em 1953,
e que por sua vez abrirá, em 1955, 0
espaço literário (Rocco, 1987). O jornalismo, aquele dos anos 1950 e 1%0, permitiu-lhe
exercer um intercâmbio dialético com o mundo, o que ele chamara, em uma carta a
George Bataille, de "nomear o possível". A escrita em si lhe permitia
se retirar do mundo e "responder ao impossível". De um lado, um dever,
do outro, uma exigência. De um lado a presença, do outro, a ausência. E, para
ele, a presença não podia ser da ordem da mestria, da mestria conceitual,
professoral. Beckett tentou um pouco, antes de compreender que o ensino não era
feito para ele. Blanchot nem sequer tentou. É necessário também lembrar que ele
provavelmente frequentou pouco a escola: seu pai era preceptor privado, e o
menino, extremamente dotado, fez o exame final do liceu com 15 ou 16 anos.
3. Blanchot escolheu a forma do diálogo e do fragmento, formas
importantes da expressão do seu pensamento. Por que?
Novamente, esse tema acabou de ser abordado. É que suas
questões estão extremamente interligadas e você as coloca em termos de escolha.
É uma maneira determinista, ou sartreana, de ver as coisas. Talvez se possa
dizer também que você escolhe a escrita, uma forma de escrita. Entre uma decisão
tomada e uma escolha consentida, muitos motivos entram em jogo. A conversa e o
fragmento não aparecem senão muito tarde na escrita de Blanchot, cuja sintaxe
permanece sobretudo interligada. Penso que sua ligação com Emmanuel Lévinas
determinou de um modo muito nítido a forma do diálogo, da conversa. É em A conversa infinita (Escuta, 2001) que
ele começa a utilizá-la regularmente: em lugar de apresentar suas ideias sob
forma discursiva e linear, ele escolhe dois interlocutores que dialogam, sendo
que um deles representa mais seus próprios pensamentos. Esses textos, dos quais
alguns pressupõem Lévinas, ilustram o caráter dissimétrico do diálogo, e
ilustram a dissimetria das discussões que Blanchot podia ter com Lévinas (uma
não-simetria, mas não uma convergência ou divergência) sobre questões
filosóficas, como aquelas do diálogo, da troca e da partilha. Pode-se afirmar, acredito,
que a forma da conversa desemboca naquela do fragmento. E isso é cronológica e
logicamente verificável. Nas conversas que ele escreve, nas conversas que Iê, e
a parte central e morta do diálogo que lhe interessa cada vez mais: o entre que
surge entre os interlocutores. Essa parte secreta e inominável e aquela que os fragmentos
designam.
Os fragmentos são como os restos de uma conversa impossível,
a começar pela conversa de uma civilização que chega ao desastre da Shoah, o
acontecimento "absoluto", como diz Blanchot, que exerce papel
fundamental num texto como L'Ecriture du
désastre (A escrita do desastre), escrito em fragmentos. Acrescentemos que
Blanchot redige sua escrita fragmentária nas pegadas daquela de Heráclito,
Nietzsche ou Bataille, sem falar do romantismo alemão, escritores ou movimento
aos quais, na mesma oportunidade, ele presta homenagem.
Mas eu penso que não se pode isolar essas duas formas do
resto da obra de Blanchot. Nele, a escrita sempre apresentou o paradoxo de ser
um misto de continuidade e descontinuidade. Numa tese que acabou de ser
defendida na Universidade de Paris 7, Les
plans du récit (Os pIanos do relato), Jonathan Degenève mostrou como os
textos de Blanchot, Beckett e des Forêts, e também aquele do cinema de Welles,
se recusavam, os primeiros, a "insensibilizar" as transições, e o último,
a "narrativar" os cortes. As escrituras assumem a descontinuidade
inerente à acidentalidade do gênero narrativo. Elas expõem o modo de construção
de todo relato: a disjunção de pIanos. E como a obra de Blanchot me parece
inteiramente narrativa, isso equivale a dizer também, num certo sentido, que
eIa é inteiramente fragmentária, sob modos diversos que uma leitura poética,
que ainda não foi feita, deveria poder indicar.
4. Maurice Blanchot escreveu um relato sobre um jovem "morto-imortal”,
L'instant de ma mort (O instante da
minha morte). Blanchot fala dele mesmo?
Dele mesmo? Ele, o homem, o autor que, segundo os contratos
de leitura estabelecidos pelos estudiosos da poética, poderíamos identificar
com o narrador-personagem do relato? E ele mesmo, o ipse (o mesmo), a categoria da reflexão, do olhar, da identidade,
do entre-dois, segundo uma reflexão filosófica, conferiria ao relato um valor,
se não testamentário, ao menos testemunhal? Blanchot fez de tudo para
embaralhar as pistas. O acontecimento enquanto tal, o acaso que lhe permitiu
escapar da morte no final da segunda guerra mundial, é confirmado por uma carta
endereçada a Pierre Prévost dois meses depois dos fatos, em setembro de 1944.
Também é evocado muito brevemente num relato publicado em 1949, o qual mais
tarde se intitularia La folie du jour
(A loucura do dia). O fato é ainda atestado por amigos de Blanchot, a quem ele
fez confidências. A esses diferentes modos de relação, epistolar, ficcional,
oral, podemos acrescentar nossa fé. O que mais, além disso? Talvez, levar em
conta o humor da narração, começando pelo jogo com a data escrita na casa da
família: 1807, escreve Blanchot, precisando que se trata do ano em que Napoleão
entrou em Iena, sob os olhos de Hegel postado numa janeIa. Ora, a data escrita
na casa da família de Blanchot, em Qauin, na Borgonha, e 1809, e a data da
invasão francesa e 1806. Inserindo uma data intermediária, Blanchot modifica
duas vezes a realidade, a realidade familiar (a fundação da casa onde nasceu),
a realidade histórica (a ocupação francesa que motivara depois as ocupações
alemãs). Por meio dessa ficcionalização do acontecimento, ele escreve seu próprio
nascimento, 1907, na genealogia de uma família de proprietários de terra.
Assim, 1907 se torna a data de celebração do centenário da casa da família.
Como sucede muito em Blanchot, uma vacilação de datas que, desta vez, lhe
permite mostrar-se ao leitor a um só tempo como ele, na realidade, e ele
mesmo, na ficção.
5. Blanchot amava a literatura e a música. Ele escreveu sobre
esse último tema? Existem músicos entre os personagens de Blanchot?
Sim, como muitos escritores, Blanchot amava tanto a música
quanto a literatura, se não mais. Durante toda a sua vida, foi excelente
pianista; seu compositor preferido era Schumann. Jamais quis escrever música.
Mas sabemos até que ponto era sensível à poesia, e conhecemos o número considerável
de artigos que escreveu sobre poetas. Sua prosa, alias, é muito poética. Se não
há músicos nos seus relatos, há uma cantora, Cláudia, em Au moment voulu (Na hora certa). E é uma mulher amada pelo
narrador, a quem este propõe que venha viver com ele no suI. Esse pedido é
provavelmente autobiográfico: penso na mulher que Blanchot amou, Denise Rollin,
que foi a mulher de seu amigo George Bataille. Mas o relato faz também de
Cláudia um "personagem conceitual", segundo a fórmula de Deleuze; um
personagem poético, musical, canoro. Denise, Cláudia, a vida, a ficção: ela,
ela mesma.
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