Inscrições e informações: Instituto de Artes do Pará (IAP), Gerência de Literatura - 40062905 ou 2908.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

                                                               Foto: B L A N C H O T  | D U R A S
Dias 27 de Fevereiro, às 18h30
GALERIA THEODORO BRAGA

LEITURA DRAMÁTICA DO TEXTO:
A Doença da Morte – de Marguerite Duras
 
Av. Gentil Bittencourt, 650, Térreo | Belém 
Informações: (91) 32784578 - 32410655


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013




ECOS DE BLANCHOT & MAX


Velhos homens devem ser exploradores, não importa onde...
Temos de estar sempre nos movendo na direção de uma nova intensidade, de uma
união a mais, de uma comunhão mais profunda...
Nos movendo através de uma desolação escura, fria e vazia: O grito das ondas, o
grito do vento, as águas imensas das gaivotas e dos golfinhos: No meu fim está o
meu inicio (T. S. ELIOT).


Não há espaço, sem tempo. Não há tal coisa como espaço em branco. Sempre se poderá imaginar a vinda – a chegada. Que alguma coisa ainda deve acontecer. Dois homens, um romancista e um poeta, estabelecem um passível jogo. Que estejam tensos, pois o tempo constitui a tensão. Espaço-tempo se dividindo em dois. A respiração, realizada de volta entre um e outro, fala em tempo de silêncio, em espaço de silêncio – a literatura. Um dos homens atende à porta. Olha para baixo. A cabeça inclinada para o chão como um guardião na sala da hospedaria do Castelo. Apenas que aqui ele não está num retrato. Observada, a imagem não o confirma numa morfologia para os olhos que se tornará o demônio de uma longa época. Certo estrabismo a certa semiótica da reflexividade. Ele se desprende da foto, sem no entanto avançar no espaço. O outro não questiona a importância de ficar ali parado, uma vez que também está parado e recolhido em si. Sem rasgar a ilusão de espaço, na distância limite de um saltar para o outro, apertarem-se as mãos: se dá o duplo desvio. As mãos estendidas em silêncio criam lacunas, desprendem-se, desvanecem. Eles que sempre estiveram além dos horizontes da aparência. Agora, face a face, não têm como pronunciar um discurso de circunstância e lançar âncora entre os musgos. Um rastreou o outro, é verdade, mas sem nunca o mapear. Leu o livro “Thomas, o Obscuro” quando ainda escrevia seu segundo livro, e entregava-se definitivamente à feitiçaria do poema. O outro nunca o avistou. Este poderia ser o cenário tardio entre os dois homens. A respiração sempre foi o maior problema para eles. Passeando a vida, o fim à vista. Para eles o desastre cuida de tudo. E o rápido sorriso corajoso não bastaria. A aquiescência da cabeça. O olhar. Tudo isso assusta o inferno dentro deles. Por certo, ele deveria ter gostado de ler com minúcia e atenção insuperáveis o “Anti-Retrato” ou mesmo o “Caminho de Marahu”. A escritura do desterro que tanto o agradava. E teria visto Kafka e Paul Celan, em alguns versos. Os signos da solidão. A experiência do desmoronamento. A falta vivente do ser. Não teria sido exatamente isto a escritura desse outro que, alheio, estranho, lhe bate à porta, num fim de outono? O que seria o mesmo que dizer: desde que entrara para a poesia? Um homem de uma terra desfalecente, onde a vida e a cultura não passam de uma quimera? Onde o poema, justamente depois de um amplo movimento internacional de três poetas, passou a valer menos que qualquer slogan publicitário. Fora do mercado, ter que ganhar a vida – trocar, vender, perder, dar, recuperar, perder outra vez. Amores. Alegrias insensatas. As grandes dores. Um homem impelido a dar seus passos em direção ao ócio e ao silêncio. Para quem a amizade pela poesia não se estrutura em ter que percorrer o mesmo caminho. Amizade é mudar o caminho. Errá-lo. Não entrar na geração. Surpreendê-la pelos flancos. O Inesperado. Não esperar que se confirme a Revelação. E como aquelas doze baladas a que Nietzsche se refere que contamos sempre errado. Não há o encontro marcado, sequer conosco mesmo... “Mas como eu, ele foi parecido comigo”. De onde poderá ter ecoado isto?


Ney Ferraz Paiva, 20 de fevereiro 2013.
Imagem: Jacob Bijani

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

sábado, 16 de fevereiro de 2013

ALBERTO AMARAL e NILSON OLIVEIRA
PÚBLICO JOVEM CELEBRA MAURICE 
BLANCHOT fevereiro é o mês de Blanchot em Belém 

Como entrar na obra de Maurice Blanchot? Tentamos algumas possíveis passagens ontem na Galeria Theodoro Braga, pelas "entradas múltiplas" nas conversações com Alberto Amaral e Nilson Oliveira. As conversações giraram em torno de Blanchot e Lévinas, abordagem da Amizade feita por Alberto Amaral considerando "o infinito como lugar do estranhamento". Por sua vez, Nilson Oliveira, tratou de considerar as "derivações do desastre" na obra blanchotiana e em seus intercessores. Na próxima quarta-feira, 20, dia da morte de Blanchot, tentaremos entrar na sua obra por outra extremidade. Izabela Leal conectará Blanchot a outro grande escritor francês, Charles Baudelaire, considerando o tema da "encenação da morte e a poesia moderna". Ney Ferraz Paiva estabelecerá outro cruzamento ao falar dos "ecos" entre Blanchot e Max Martins. Consta que Max era leitor de Blanchot. Que o teria lido quando escrevia seu segundo livro, "Anti-Retrato", publicado no início da década de 1960, período seminal para a literatura, a arte e o pensamento pelo mundo.








Público na abertura da exposição "Solidão Essencial Solidão no Mundo - Diálogos
com  Maurice Blanchot", na Galeria Theodoro Braga, visitas até 07 de março.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

BLANCHOT E SEUS INTERCESSORES
ciclo de conversações - performances – projeções

DIA 15 DE FEVEREIRO
Galeria Theodoro Braga - às 18h
Av. Gentil Bittencourt - Nº 650 | Belém

Informações: (91) 32784578 - 3241655

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013


Fala dos confins

O lugar da literatura na obra de Foucault
Peter Pál Pelbart
Seria preciso invocar o nome de Maurice Blanchot para lembrar a voz quase inaudível que marcou, de maneira inconfundível, toda uma geração de pensadores, entre os quais se incluem Foucault, Deleuze e Derrida. Blanchot, a cantora Josefina da filosofia francesa do pós-guerra… Na novela Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos, de Kafka, o povo de camundongos tem grande admiração por Josefina e até sente que precisa de sua voz para reunir-se, mas não compreende o que nela é tão especial e nem sequer se é especial – o seu canto mais parece um chiado, ou mesmo um silêncio. Pode ser que sua glória resida, afinal, neste gracioso e indecifrável mistério: talvez ela jamais tivesse cantado, mas à sua maneira, com o seu “nada de rendimento”, livrava o povo das “cadeias da existência cotidiana”, como afirmaram Deleuze e Guattari.
Blanchot chamou a atenção para esta situação paradoxal em Kafka: nunca sabemos se estamos presos dentro da existência cotidiana (e “nos voltamos desesperadamente para fora dela”) ou se dela estamos excluídos (por isso “em vão nela buscamos sólidos apoios”). Fronteira invisível e sempre deslocada, entre a vida e a morte, entre sair e entrar, entre ansiar pela comunidade ou dela apartar-se na solidão. Kafka o descreveu na forma de um exílio: “Agora já sou cidadão nesse outro mundo que tem com o mundo habitual a mesma relação que o deserto com as terras cultivadas”. Mas Blanchot adverte para o sentido desse desterro, que não cabe considerar como uma fuga: esse outro mundo em que Kafka mora não é um além-mundo, sequer é outro mundo, mas o outro de todo e qualquer mundo. Para o artista ou o poeta, conclui ele, talvez nem existam dois mundos, como queria Kafka, mas mundo algum, nem sequer um único mundo, e apenas o fora no seu escoamento eterno..
A antimatéria do mundo
Foucault não ficou indiferente a essa exterioridade. O autor de História da loucura confessa, na primeira entrevista concedida após sua publicação, em 1961, que seu livro responde a duas influências principais. Por um lado, seu interesse pela presença da loucura na literatura – Blanchot, Bataille, Roussel –, por outro, a ideia de estrutura tal como Dumézil a trabalhou. Mais do que os romances escritos por Blanchot (Thomas l’ObscurAminadab, L’Arrêt de mort, Le Très-Haut etc), talvez seja preciso evocar a leitura sedutora que ele propôs de autores que tiveram com a loucura uma proximidade extrema, tais como Hölderlin, Sade, Lautréamont, Nietzsche, Artaud, em suma, toda essa linhagem que comparece no fim da História da loucura. Com efeito, nesses ensaios, Blanchot ressalta uma dimensão à qual Foucault, mas igualmente muitos de seus contemporâneos, não ficarão indiferentes: a vizinhança necessária entre palavra e silêncio, escritura e morte, obra e erosão, literatura e desmoronamento, experiência de desamparo e colapso do autor. Como diz Blanchot em Le livre à venir: “O que é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o esgarçamento, a intermitência e a privação mordente: o ser não é o ser, é a falta de ser, a falta vivente que torna a vida desfalecente, inapreensível e inexprimível”. Blanchot redescobre na literatura um espaço rarefeito que põe em xeque a soberania do sujeito. O que fala no escritor é que “ele não é mais ele mesmo, ele já não é ninguém”: não o universal, mas o anônimo, o neutro, o fora. A obra como essa experiência que arruína toda experiência, que se coloca aquém da obra, “o aquém onde, do ser, nada é feito, onde nada se realiza, a profundidade da inoperância do ser”. Experiência insólita, que desapossa o sujeito de si e do mundo, do ser e da presença, da consciência e da verdade, da unidade e da totalidade – experiência dos limites, experiência-limite, dirá Bataille.
Todo esse leque temático já está presente no prefácio original à História da loucura, posteriormente abandonado. Ali Foucault faz referência a uma linguagem originária, “muito frustra”, em que razão e não-razão se falam ainda, por meio dessas “palavras imperfeitas, sem sintaxe fixa, um pouco balbuciantes”. Por meio delas, diz ele, os limites de uma cultura são questionados para aquém de sua dialética triunfante. Aquém da história, a ausência de história, um murmúrio de fundo, o vazio, o vão, o nada, resíduo, rugas. Aquém da obra, a ausência de obra, aquém do sentido, o não-sentido. Aquém da razão, a desrazão. Experiência trágica encoberta pelo surgimento da loucura enquanto fato social, objeto de exclusão, de internamento e de intervenção. Como fazer para que a desrazão, na sua alteridade irredutível, na sua “estrutura trágica”, interrogue o nascimento da própria racionalidade psiquiátrica que a reduziu ao silêncio ao convertê-la em loucura?
 Em todo caso, lembremos os dois termos do título original da edição de 1961, Folie et déraison,histoire de la folie à l’âge classique. Para além dos mal-entendidos líricos que o binômio Loucura e Desrazão, ulteriormente suprimido, suscitou, ele continua a nos intrigar. No seu ensaio sobre esse livro, Blanchot se pergunta se no espaço que se abre entre loucura e desrazão a literatura e a arte poderiam acolher essas experiências-limite e, assim, “preparar, para além da cultura, uma relação com aquilo que a cultura rejeita: fala dos confins, fora da escrita”. Ao que Foucault responde, nesse diálogo que eu reconstruo a meu modo, com o exemplo Blanchot. Nele prima o esquecimento não-dialético, a proliferação em direção a uma exterioridade nua, a linguagem como murmúrio incessante destituindo a fonte subjetiva de enunciação bem como a verdade do enunciado, a emergência de um anônimo, livre de qualquer centro ou pátria, capaz de ecoar a morte de Deus e do homem. “Ali onde ‘isso fala’, o homem não existe mais.” Contra a dialética humanista, que por meio da alienação e da reconciliação promete o homem ao homem, Blanchot teria exprimido o esboço de outra “escolha original” que emerge em nossa cultura. De toda forma, se a linguagem não é, para Foucault, “nem a verdade nem o tempo, nem a eternidade nem o homem, mas a forma sempre desfeita do fora”, entende-se por que ele pôde acrescentar, fazendo eco a Kafka e a Blanchot, que a escritura não é parte do mundo, mas sua “antimatéria”.
A parte do fogo
Já podemos avançar uma hipótese mais geral. Se nesse primeiro momento de seu trajeto Foucaultacredita na literatura é porque acredita na sua exterioridade. E se lhe interessa a linguagem da loucura é porque nela está em jogo essa mesma exterioridade. Desse ponto de vista, a escritura e a loucura estariam no mesmo plano, tendo em vista seu caráter não-circulatório, a inutilidade de sua função, o caráter de autorreferência que lhes é próprio. Mas, também, seu poder transgressivo – “a fala absolutamente anárquica, a fala sem instituição, a fala profundamente marginal que cruza e mina todos os outros discursos”. A literatura e a loucura pertenceriam ao que Blanchot chamou de A parte do fogo, aquilo que uma cultura reduz à destruição e às cinzas, aquilo com o que ela não pode conviver, aquilo de que ela faz um incêndio eterno.
Porém, no momento mesmo em que explicita esse lugar da literatura, Foucault também já se pergunta se a época em que o ato de escrever bastava para exprimir uma contestação em relação à sociedade moderna não estaria ficando para trás. Ao reaver o espaço de circulação social e de consumo, talvez a escritura, recuperada pelo sistema, tenha sido vencida pela burguesia e pela sociedade capitalista, deixando de ficar “de fora”, não mais conservando sua exterioridade. E indaga: para passar para o outro lado, para incendiar-se e consumir-se, para entrar num espaço irredutível ao nosso e num lugar que não fizesse parte da sociedade, será que agora não seria preciso fazer outra coisa que não literatura? E novamente evoca Blanchot: se hoje descobrimos que devemos sair da literatura, abandonando-a a seu “magro destino histórico” fixado pela sociedade burguesa, foi Blanchot quem nos indicou o caminho. Aquele que mais esteve impregnado de literatura, mas sob um modo de exterioridade, é aquele que nos obriga a abandoná-la no momento em que ela se torna essa interioridade confortável em que nos comunicamos e nos reconhecemos.
Perguntamo-nos se Foucault não teria, por meio do caso “literatura” e “loucura”, esboçado um diagnóstico mais geral, referente ao estatuto da própria exterioridade em nossa cultura. Toni Negri e Michael Hardt tentaram mostrar, recentemente, que o capitalismo mundial integrado assumiu a forma do Império, ao abolir toda exterioridade, devorando suas fronteiras mais longínquas, englobando a totalidade do planeta, mas também seus enclaves até há pouco invioláveis, acrescentaria Jameson, como a Natureza e o próprio Inconsciente. Talvez esse diagnóstico tão cruel quanto precoce de Foucault, e sua realização imperial planetária, lancem luz sobre nossa claustrofobia contemporânea. É o mundo sem fora, é o capitalismo sem exterior, é o pensamento sem exterioridade – diante do qual o fascínio pela loucura como bolsão de exterioridade, predominante há algumas décadas, soa hoje completamente ultrapassado.
Mudança de perspectiva
O que terá feito Foucault mudar tão radicalmente de perspectiva? Certamente o trabalho sobre as prisões, a nova problematização do poder e, consequentemente, o entendimento retrospectivo de que a “loucura não é menos um efeito de poder que a não-loucura”, de que ela é, “segundo uma espiral indefinida, uma resposta tática à tática que a investe”, e que talvez não caiba supervalorizar o papel do manicômio e de suas muralhas, já que ele deve ser entendido desde fora, isto é, como uma das peças de uma estratégia positiva “mais ampla e exterior” que, por sua vez, está na origem de uma tecnologia da psique.
Depois dessa nova perspectiva aberta pelo período genealógico, em que “sempre se está no interior”, o que terá restado da exterioridade? Não podemos seguir os meandros desse destino ao longo de seu trajeto teórico, e ficaremos num único exemplo inteiramente esclarecedor, o da experiência-limite já na última fase de sua obra. Em 1980, ao evocar essa experiência pela qual o sujeito se arrebata a si mesmo, levado ao seu próprio aniquilamento ou dissolução, tema caro aos anos 1960, Foucault já não a associa à experimentação da exterioridade de uma cultura, como anteriormente – a sua parte do fogo –, mas a uma experiência pessoal e teórica, pela qual seria possível pensar diferentemente. Se a literatura ou a loucura já não constituem uma exterioridade absoluta (pois tudo é interior), a experiência-limite é preservada e valorizada enquanto uma operação sobre si mesmo. Não experiência vivida, explica ele, mas o invivível para o qual é preciso fabricar-se. Não mais a transgressão de uma fronteira ou um interdito (mesmo se os nomes de Bataille, Blanchot e Nietzsche retornam), mas demolição e refabricação de um si. O fora ganha uma surpreendente imanência subjetiva.
Publicado originalmente na Revista Cult 134 - Imagem: Miranda Lichtenstein

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

BRIGITTE GRIGNA
“L’instant de ma mort” – Maurice Blanchot: uma homenagem

Solange Rebuzzi[ 1]


No final de junho de 2002, chegando a Paris, qualquer leitor encontraria a vitrine da livraria PUF[ 2] – no Boulevard Saint Michel – completamente ocupada com a obra de Maurice Blanchot. Eram fotos, cartas, alguns objetos pessoais e livros - muitos livros. Lá dentro, uma enorme mesa próxima à porta exibia em pilhas, os livros do nomeado “último escritor”.
Encantada e assustada eu mexi lentamente nos livros, e toquei-os com extremo cuidado, indagando-me: “por que os livros de Blanchot e a incrível vitrine estão assim expostos?”
Entre os livros que consegui escolher para adquirir – um pequenino e re-editado pela Gallimard recentemente – “L’instant de ma mort” – de apenas 9 páginas.


O livro


Este pequeno livro conta, em narrativa de primeira pessoa, que um jovem – um homem ainda jovem – foi impedido de morrer pela morte mesma...
e o pequeno récit persegue detalhes do dia de um jovem francês, no final da Segunda Grande Guerra. Algumas reflexões fragmentadas traduzem os instantes, talvez vividos – quem sabe?!
O jovem francês é colocado diante do pelotão de fuzilamento de soldados alemães nazistas, que pretendiam executá-lo ali mesmo, em frente à sua família (às mulheres da família). Exposto e percebendo a morte tão próxima, o jovem relata que sentiu uma leveza extraordinária: – “o encontro da morte e da morte ?” Para afirmar em seguida: “uma espécie de beatitude (nada feliz todavia).”
Ao terminar a narrativa do livro, ele declara:
– “Seria isto a guerra: a vida para alguns, para outros a crueldade do assassinato”.(L.i. d. m. M, p.15)
No livro publicado pela primeira vez em 1994, pela pequena editora Fata Morgana, o leitor se depara com o compasso/descompasso da experiência com a violência e o trauma. Um relato que retorna na escrita, em sua possibilidade de se fazer inscrever. Mas Blanchot viveu, e viveu até os 95 anos de idade. E no percurso de sua escrita, encontramos um combate que faz trabalhar o que testemunha e o que se escreve em silêncio, no texto em fragmento. Falando do que não se diz linearmente, e não se diz todo, o escritor conclui:
“Que importa. Só permanece o sentimento de leveza que é a
morte mesma, ou para dizer mais precisamente, o instante
de minha morte que a partir deste momento sempre
persiste”.
(L.i.m.M, p. 18)
No que persiste e insiste – um impossível se apresenta. Blanchot percorre “o instante” em seu desdobrar obra – escreve e pensa sobre a morte e o morrer neste texto ficcional, poético e teórico – inclusive, sobre a própria morte.
Alguns personagens como “J” do livro L’arrête de mort,[ 3] escrito em 1948também chegam a nos chocar pela intensa dor, enquanto o narrador se confessa inteiramente tomado pela experiência do morrer:
“Quem me desviou do caminho? Meu espírito justo. Quem faz com que agora, cada vez que meu túmulo se abre, eu encontre nele uma ideia bastante forte para reviver? O próprio riso sarcástico de minha morte. Mas saibam que lá aonde vou, não há obra, nem sabedoria, nem desejo, nem luta; lá onde entro,
ninguém entra. Este é o sentimento do último combate”.
(P.d.M, p.80)
A palavra de Maurice Blanchot permanecerá entre nós – com o assombro que não se apagará em nossa memória – e da morte do “último escritor” nada sabemos. Um “nome familiar e estranho” como nos disse Derrida[ 4], de alguém que deu um testemunho sempre nos fazendo pensar. Podemos, hoje, dizer que “ele morre sem desaparecer mais ainda que desapareceu sem morrer”.
Permanecemos com o seu vestígio...
A Maurice Blanchot em sua
invisibilidade,
merci!
Texto lido em homenagem ao escritor Maurice Blanchot, na Escola Letra Freudiana, logo após sua morte.

Notas:
[ 1] Poeta e Psicanalista.
[ 2] PressUniversitaire de France, livraria e editora, em Paris.
[ 3] Traduzido no Brasil como Pena de morte pela editora Imago, por Ana de Alencar.
[ 4] Un témoin de toujours, título do texto pronunciado pelo filósofo Jacques Derrida, no momento da incineração do escritor Maurice Blanchot no dia 24 de fevereiro de 2003, na França.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013


O instante de minha morte

Maurice Blanchot

Fragmentos do texto traduzidos por Solange Rebuzzi

Este livro foi anteriormente publicado nas edições Fata Morgana em 1994, e posteriormente nas edições Gallimard, 2002. Eu me recordo de um jovem – um homem ainda jovem – impedido de morrer pela morte mesma – e talvez pelo erro da injustiça.
Os Aliados haviam se reunido para tomar posse do solo francês. Os Alemães, já vencidos, lutavam em vão com uma ferocidade inútil.
Em uma grande casa (o Castelo, diria-se) batiam na porta com freqüência timidamente. Eu sei que o jovem vinha abrir aos hóspedes que sem dúvida pediam abrigo.

Desta vez, urrando: “Todos fora”.
Um tenente nazista, em um francês degradante, fez sair primeiro as pessoas mais velhas, depois duas jovens.

“Fora, fora”. Desta vez, ele gritava. O jovem não procurava, no entanto fugir, mas avançava lentamente, de forma quase sacerdotal. O tenente o sacudia lhe mostrava os cartuchos, as balas, havia tido ali combate, o solo era um solo guerreiro.
O tenente se expressava em uma língua bizarra, e colocando no nariz do homem já menos jovem (se envelhece rápido) os cartuchos, as balas, uma granada, gritava com superioridade: “Eis aonde você vai chegar”.
O nazista colocou em fileira seus homens para aguardar, senão as regras, o alvo humano. O jovem disse: “Faça ao menos entrar minha família”. Seja: a tia (94 anos), sua mãe mais jovem, sua irmã e sua cunhada, um longo e lento cortejo, silencioso, como se tudo já estivesse executado.
Eu sei – eu o sei – que este que os Alemães tinham em mira não aguardando senão a ordem final experimentava então um sentimento de leveza extraordinário, uma espécie de beatitude (nada feliz, todavia) – soberana alegria esfuziante? O encontro da morte com a morte?
Por sua vez, eu não procurava mais analisar o sentimento de leveza. Ele estava talvez inteiramente invencível. Morto – imortal. Talvez o êxtase. Talvez o sentimento de compaixão pela humanidade sofredora, o prazer de não ser imortal nem eterno. Doravante, ele foi levado à morte, por uma amizade ilícita.
Neste instante, rápido retorno ao mundo, estoura um barulho considerável de uma batalha próxima. Os camaradas da Resistência desejavam colocar em segurança este que eles sabiam em perigo. O tenente se afasta para prestar contas. Os alemães permanecem em ordem, prontos a aguardar ainda em uma imobilidade que segurava o tempo.
Mas eis que um deles se aproxima e diz em voz firme: “Nós, não alemães, russos”, e, em uma espécie de sorriso: “exército Vlassov”, e fez sinal de desaparecer.
Eu acredito que ele se afastava sempre no sentimento de leveza, a ponto de só voltar a si na floresta longínqua chamada “Bois des bruyères”[ 5], onde ele permanecia abrigado pelas árvores que ele conhecia bem. É dentro da floresta espessa que tudo acontece, e depois de bastante tempo, ele reencontrava o sentido do real.

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Até mesmo os cavalos inchados, sobre o caminho, no campo, testemunhavam uma guerra que havia durado. Na realidade, quanto tempo havia passado?
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Sobre a fachada estava inscrito, como um presente indestrutível, a data de 1807. Era ele tão culto a ponto de saber que este era o famoso ano de Iena, quando Napoleão, em cima de seu pequeno cavalo cinza, passava em frente às janelas de Hegel que reconheceu nele “a alma do mundo”, como ele escreveu a um amigo? Mentira e verdade, pois, como Hegel escreveu a um outro amigo, os Franceses pilharam e saquearam sua morada. Mas Hegel sabia distinguir o empírico e o essencial. Neste ano de 1944, o tenente nazista teve pelo Castelo o respeito ou a consideração que as fazendas não provocavam. No entanto revistaram em toda parte. Pegaram algum dinheiro; no quarto separado, “o quarto de cima”, o tenente encontrou papéis e uma espécie de manuscrito espesso – que continha talvez planos de guerra. Enfim ele partiu. Tudo queimava, exceto o Castelo. Os Senhores haviam sido poupados.
Então começava sem dúvida para o jovem o tormento da injustiça. Mais êxtase; o sentimento de que não estava vivo senão porque, mesmo aos olhos dos Russos, ele pertencia a uma classe nobre.
Era isto, a guerra: a vida para alguns, para outros a crueldade do assassinato.
Permanecia, no entanto, no momento no qual a fuzilaria não foi mais que uma espera, o sentimento de leveza que eu não saberia traduzir: libertado da vida? o infinito que se abre? Nem felicidade, nem infelicidade.

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Eu sei, eu imagino que este sentimento não analisável mudava o que lhe restava da existência.
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“Eu estou vivo. Não, você está morto”.

Mais tarde, de volta a Paris, reencontra Malraux. Este lhe contou que havia sido feito prisioneiro (sem ser reconhecido), que havia conseguido escapar, perdendo um manuscrito inteiro. “Não eram senão reflexões sobre a arte, fáceis de reconstituir, enquanto que um manuscrito não era o ser”. Com Paulhan, foi fazer pesquisas que só podiam permanecer vãs.
Que importa. Só resta o sentimento de leveza que é a morte ou, para dizer mais precisamente, o instante de minha morte daqui por diante sempre em espera.

nota:
[ 5] Floresta de flores da região, de cor rosa violeta.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013



Lévinas, o grande amigo
Do rosto

Com J. D. Salinger e Thomas Pynchon, Maurice Blanchot faz parte dos escritores que sistematicamente se recusaram a conceder a imprensa fotografias. De fato, há apenas três fotografias conhecidas de Blanchot, dadas por seu amigo Emmanuel Lévinas, às quais se deve acrescentar a « foto roubada» de 1985, tirada por um paparazzo em um subúrbio parisiense. Ainda que ela não seja sem relação ao interdito da re­presentação própria à religião judaica, a recusa de Blanchot anda antes de tudo de mãos dadas com seu discurso sobre o apagamento, até mesmo o desaparecimento « mundano», do artista.
Em uma carta datada de 6 junho de 1990, o fotógrafo Jean-Marc de Samie interrogou Maurice Blanchot sobre sua relação com o rosto humano, ao mesmo tempo que evita lhe pedir a autorização para fo­tografá-lo. Delicada questão à qual Maurice Blanchot respondeu nesses termos.

Caro Senhor,

Agradeço por fazer chegar até a mim o rosto (fotografado) de um de meus amigos mais caros, e o mais antigo, Emmanuel Lévinas. 
Tu me perguntas também o que evoca a palavra « rosto ». Precisamente, Lévinas nos disse de uma maneira profunda: o rosto é outrem, o extremo longínquo que de repente se apresenta de face, a descoberto, na franqueza do olhar, na nudez de um contato que na proíbe, quando outrem se revela a mim como aquilo que está fora e acima de mim, não porque ele seria o mais potente, mas porque aí cessa meu poder. Diante do rosto, diz ainda Lévinas, não penso mais poder. Eticamente, proibição e impossibilidade de matar. Podemos evidentemente propor definições mais ordinárias: metafisicamente o rosto é a exte­rioridade da interioridade, mas o fora permanece aquilo que há de infigurável na figura. Eticamente, o rosto é a Lei. Confronto-me, face ao rosto, com a resistência do que não resiste a mim em nada.
Por fim, esteticamente, o rosto é derradeira aparição do que desaparece, o invisível que se dá a ver ao se esquivar e escapar. Perdão por me ater a essas poucas palavras que não valem o silêncio. 
Expresso-te meus melhores sentimentos. Maurice Blanchot

Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Programação Preparatória ao Colóquio Blanchot que acontecerá em Belém, 28, 29, 30 de março.

Quando estou só, não sou eu que estou aí e não é de ti que fico longe, nem dos outros, nem do mundo. Não sou o indiví­duo a quem aconteceria essa impressão de solidão, esse senti­mento dos meus limites, esse tédio de ser eu mesmo.
Quando estou só, não estou aí. Isso não significa um estado psicológico, indicando o desaparecimento, a supressão desse direito de sentir o que sinto a partir de mim mesmo.
Não é que eu seja um pouco menos eu mesmo, é o que existe "atrás do eu", o que o eu dissimula para ser em si.

Quando sou, ao nível do mundo, aí onde são também as coisas e os seres, o ser está profundamente dissimulado.

Essa dissimulação pode tornar-se trabalho, negação. "Eu sou" (no mundo) tende a significar que somente sou se posso separar-me do ser: negamos o ser — ou, para esclarecê-lo por um caso particular, negamos, transformamos a natureza — e, nessa negação que é o trabalho e que é o tempo, os seres realizam-se e os homens erguem-se na liberdade do "Eu sou".

O que me faz eu é essa decisão de ser quando separado do ser, o ser sem ser, o ser isso que nada deve ao ser, que recebe seu poder da recusa de ser, o absolutamente "desnaturado", o ab­solutamente separado, isto é, o absolutamente absoluto.

Esse poder pelo qual me afirmo renegando o ser é real, entretanto, na comunidade de todos, no movimento comum do trabalho e do trabalho do tempo.

"Eu sou", como decisão de ser sem ser, só tem verdade porque essa decisão é minha a par­tir de todos, porque se concretiza no movimento que ela possi­bilita e torna real: essa realidade é sempre histórica, é o mundo que é sempre realização do mundo.

Eu sou o que não é, aquele que cometeu secessão, o sepa­rado, ou ainda, como se disse, aquele em quem o ser é discu­tido.

Os homens afirmam-se pelo poder de não ser: assim agem, falam, compreendem, sempre outros que não são eles e que es­capam ao ser por um desafio, um risco, uma luta que vai até à morte e que é história.

Foi o que Hegel mostrou. "Com a morte começa a vida do espírito." Quando a morte se torna poder, co­meça o homem, e esse começo diz que, para que exista o mun­do, para que haja seres, é necessário que o ser falte.

Maurice Blanchot | O Espaço Literário (1986)

domingo, 3 de fevereiro de 2013


CARLOS HENRIQUE ESCOBAR RESSURGE NO DOCUMENTÁRIO "OS DIAS COM ELE"
Um dos intelectuais mais provocativos do Brasil nos anos 1960 e 70, o filósofo,
dramaturgo e professor teve cinebiografia premiada em Tiradentes

Corre pelo campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) da Praia Vermelha um folclore de que toda uma ninhada de gatos abandonada lá, pelos corredores da Escola de Comunicação (ECO), hoje mora em Aveiro, Portugal, no apartamento do professor (hoje aposentado) Carlos Henrique Escobar. Pode ser que o bichano felpudo refestelado em seu colo numa sequência do documentário “Os dias com ele” — eleito melhor filme na 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes, semana passada, em Minas Gerais — seja um dos felinos da ECO. Mas nada assegura. Sabe-se apenas que todo mundo que fala sobre Escobar, seja de sua trajetória polêmica como filósofo de orientação antistalinista, seja de sua carreira premiada como dramaturgo, ou mesmo de sua experiência como pai (por vezes ausente), traz seus gatos à tona — talvez por ele mesmo frisar sua devoção pela espécie.
“Quero ser enterrado num cemitério de animais”, diz o pensador paulistano, hoje com 79 anos, numa cena de “Os dias com ele”, dirigido por sua filha Maria Clara Escobar, 24.
Emocionada pelo filme, que marca o ajuste de contas de uma relação entre pai e filha em forma documental de poema-processo, Tiradentes gargalhou em coro ao ouvir a frase mórbida do autor de peças como “Caixa de cimento” (1978), famoso por ter devassado as leituras críticas sobre luta de classes com teses como “O marxismo trágico” (1992). Tiradentes riu ainda de suas tiradas sobre autoritarismo e arte, mas se inflamou com as palavras dele sobre o Estado brasileiro, com o qual se preocupa.
— Acredito que o governo Lula e Dilma esteve e está repleto de esquerdistas farsantes, que almejam poder e riqueza, como provam as alianças deploráveis que Lula fez, com Sarney, Collor, Maluf, ou os escândalos no nível da corrupção que envolveu e envolve os governos e as políticas petistas — diz Escobar, em entrevista por e-mail ao GLOBO. — Um dia, o Brasil terá caráter suficiente para ter uma esquerda. Caráter suficiente para ter uma cultura séria.
Em “Os dias com ele”, assim como em suas aulas de Política da Comunicação na ECO, sobre catastrofismo, baseadas no livro “A transparência do mal”, do sociólogo francês Jean Baudrillard, Escobar não se rende à desesperança. Cultiva planos para preservar sua obra de autor teatral, cujo principal trabalho é “Matei minha mulher (A paixão do marxismo: Louis Althusser)” (1983), baseado no assassinato cometido pelo filósofo francês.
— Algumas das minhas peças, sobretudo “Antígona-América”, dirigida pelo Antônio Abujamra, foram censuradas pelos militares. Na verdade, o conjunto do meu teatro foi covardemente destruído pelos stalinistas. Hoje, e já é tarde, começo a publicar meu teatro escrito 30 ou 40 anos atrás. Tive oito peças montadas e tenho 15 para editar — diz o dramaturgo, que nos anos 1950 casou-se com a atriz portuguesa Ruth Escobar, com quem viveu (e fez teatro) até o início dos anos 1960.

A poesia da irreverência

Quem atuou nas peças escritas por Escobar não esconde o encanto diante da força poética de seus diálogos, que críticos teatrais como Macksen Luiz definiram nos anos 1980 como “um primado da inteligência, marcados pela necessidade de se repensar o mundo”.
— A primeira peça profissional que fiz no teatro foi “Antígona-América”, do Escobar — diz o ator Sérgio Mamberti, atual secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura. — Percebi logo o quanto ele era questionador e irreverente. Além de excelente poeta, Escobar escrevia teatro com uma preocupação lúcida acerca da América do Sul.
Mamberti conheceu Escobar na chamada Turma da Estátua.
— Nos anos 1950, a Biblioteca Municipal de São Paulo, hoje Biblioteca Mario de Andrade, tinha uma estátua no hall de entrada em torno da qual se reuniam intelectuais como Antunes Filho, Décio Pignatari, Escobar — lembra o escritor e diretor teatral Mário de Almeida, criador do Teatro de Equipe, que revelou Paulo José e Paulo César Peréio. — Juntos, naquele ambiente, descobrimos o quanto Escobar fazia do entusiasmo e da paixão a marca de seu pensamento, sempre denso. E isso se reflete em suas peças e seus poemas.
Filósofo autodidata, autor de livros seminais para o pensamento marxista brasileiro, como “Ciência da História e ideologia”, Escobar defende que ainda há uma centelha de transformação possível para o Brasil pela juventude. Deixa isso claro nos embates verbais que trava com a filha acerca do que deveria ser a narrativa de “Os dias com ele”, sugerindo planos que não se limitem a uma câmera à altura do seu peito (conforme o filme é construído), sobretudo no que se refere a suas memórias sobre a tortura de que foi vítima durante os anos de chumbo.
— Grande parte do embate se dá justamente porque somos um pouco incapazes de fazer algo a quatro mãos juntos — diz Maria Clara, fruto de um romance entre Escobar e a compositora Vera Terra.
Cineasta estreante, ela admite ter tido uma relação distante com o pai, que vive há uma década em Portugal, casado com Ana Sacchetti, com quem tem um filho, Emílio, de 15 anos:
— Após o filme, o relacionamento segue um pouco mais próximo, mais tranquilo em relação a projeções e mágoas. Mais claro, talvez, porém não muito menos doloroso. O buraco segue. E seria um erro tentar tapá-lo.
Graças à ensaística de Escobar nas imagens filmadas por sua filha, o longa de Maria Clara foi aplaudido em cena aberta por centenas de espectadores em Tiradentes e, de quebra, levou o troféu Barroco dado pelo júri oficial (só de críticos) e pelo júri jovem (de estudantes) e um prêmio de R$ 50 mil, desembolsados pelo Itamaraty. Além de ter encurtado distâncias emocionais entre a documentarista e seu documentado, “Os dias com ele”, ainda sem data de estreia, deixa como legado a redescoberta de um dos intelectuais mais provocativos do Brasil dos anos 1960 e 70. Responsável por radicalizar o ensino na UFRJ, combinando aforismos de Nietzsche e filmes de Ingmar Bergman, ele questionava as contradições da democracia brasileira.
— Com Escobar, no mestrado da ECO, entre 1974 e 76, aprendi a entender o que é “fazer uma pergunta”..., a natureza de uma interrogação qualquer. Aprendi a tentar questionar tudo aquilo que nos aparece como natural, dado, supostamente simples — lembra o crítico João Luiz Vieira, professor de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em universidades, palestras e debates, Escobar, famoso por seu porte de galã e por seus olhos azuis, chegou a ter um séquito de fãs, apelidado de escobetes, que idolatravam não apenas sua beleza, mas suas ideias e sua postura combativa. “Os dias com ele” resgata, por exemplo, uma carta em que ele desanca o poeta Ferreira Gullar por suas posições políticas em relação ao Partido Comunista Brasileiro.
— As aulas de Escobar eram performáticas, quase teatrais, típicas de uma figura controversa, que falava sem parar, mas ajudou a trazer a obra de pensadores como Gilles Deleuze para o Brasil — diz sua ex-aluna Ivana Bentes, crítica de cinema e diretora da ECO. — Escobar representava a filosofia maldita, falando de Rimbaud, de Althusser, de Nietzsche, com um ânimo que explodia a figura clássica do acadêmico, mas deixava as ideias de um pensador superprodutivo.

Barata nietzschiana

Ivana lembra que tão forte quanto as discussões filosóficas de Escobar era o folclore em torno de sua figura. E tal anedotário sempre envolveu sua obsessão por gatos. Nos anos 1980, um perfil dele publicado no “Jornal do Brasil” falava que sua antiga casa no Humaitá abrigava 20 felinos, que consumiam o equivalente a R$ 500 em carne moída por mês. Há ainda lendas na ECO sobre seu hábito alimentar recorrente: encerrar o expediente semanal num mesmo boteco, conhecido como Sujinho, tomando, numa talagada, um copo duplo de Toddy gelado.
— E, no tempo que estudei com ele, tinha a história da barata. Contam que ele, nietzschiano, ao passar por uma padaria, viu um comerciante tentando matar uma barata que andava pelo balcão. Dizem que Escobar deu uma bronca dizendo que toda forma de vida é importante — lembra Ivana. — Esses causos não mudam a importância dele para a nossa formação.
Até a sessão em Tiradentes, Escobar não havia assistido a “Os dias com ele”. Agora, com a vitória do filme, Maria Clara espera ainda ajudar o pai a desencavar sua obra teatral e seu legado filosófico. Neste momento ele prepara uma coletânea de poemas e um livro, a partir de Althusser, para pensar “uma nova prática política no Brasil”, já prometendo polêmica, com seu tom irreverente:
— Sinto que desagradarei aos mais vacilantes, aos que já acreditam numa posição política correta.

RODRIGO FONSECA Publicado originalmente: 2/02/13, O GLOBO